Seja como for, há dois milênios o labirinto se converteu no caminho do labirinto, da iniciação, a via difícil e mágica que leva ao outro mundo.Na literatura os heróis, pra acessar esse outro universo, utilizam o sonho, a névoa onde a pessoa se perde mas que, ao se dissipar, revelam o lugar de destino.
A navegação antiga, a busca ao Velocino de Ouro, as Maçãs de Ouro do Jardim das Hespérides, a de Gilgamés e a busca ao Graal antes da interpolação cristã, obedecem a esse imperativo. Igualmente, os monges dos primeiros tempos do cristianismo, como por exemplo são Brandão, saíam à aventura, com freqüência por mar e, indo de ilha a ilha, franqueavam etapa após etapa os diferentes períodos de iniciação antes de abordar, no final, onde Deus queria que se estabelecessem.
A peregrinação se converteu, desse modo, na marca distintiva dos monges irlandeses de origem céltica e foi o modelo das peregrinações à Palestina e às tumbas dos santos. No final do caminho estava a salvação, senão a iniciação. Reduzida a um nível mais popular, a um período mais acessível, a peregrinação se fez exatamente nas igrejas e nas catedrais e deu origem aos labirintos que os arquitetos traçaram sobre o enlousado dos monumentos.
O UNICÓRNIO E A DONZELA TRAIDORA
Além da idéia do encaminhamento e o enigma do Minotauro, outra imagem se relaciona com o símbolo do labirinto: O Unicórnio fabuloso, com seu corpo de cavalo e cabeça de cabra rematada por um longo corno afilado com poderes mágicos. Era de caráter arredio, inabordável e nenhuma outra besta podia rivalizar com ele na carreira. Somente uma virgem podia se aproximar e o domesticar até o fazer dormir sobre seu seio ou a cabeça em seu regaço.Seu corno passava por ser um antídoto poderoso mas que atuava somente durante sua vida.
«Os chamados unicórnios, premidos pela sede, principalmente no maior calor do ano, acodem às fontes que nessas regiões (Etiópia) são escassas. Onde se encontra multidão de animal de toda classe que, padecendo de sede muito fastidiosa, se detêm até que chegue o unicórnio pra beber ele primeiro, reconhecendo pelo instinto de sua natureza que tal água foi infectada pelos dragões e cobras que lá se encontram em grande número. As citadas bestas que aguardam antes de beber sabem que unicamente o unicórnio, dentre todos os animais do mundo, poderá desinfetar a água... que baixa a testa, molha o corno, revolve a água com ele e, de repente, bebe até se saciar...»
Para se apropriar do maravilhoso remédio era necessário, por suposto, capturar o animal. Isidore e Tzetzés dizem que se atrai e captura aos unicórnios com a ajuda duma jovem donzela que se deixa ao pé das montanhas onde se pensa que tais bestas se retiram.
O unicórnio, farejando de longe essa moça e tomando carreira com uma fúria aparente até essa virgem, repentinamente a aborda. Em vez de fazer mal fazer, atacar e destroçar cruelmente essa donzela seguindo o impulso de sua raiva natural, ao contrário, a mencionada donzela com os braços estendidos é recebida amorosamente pra lhe fazer carícia. Essa pobre besta inclina muito suavemente a testa e se estende em terra, pousa sua testa sobre o regaço da donzela e toma um prazer singular a que ela lhe esfregue muito docemente a crina e a testa com azeite, ungüento e água boa e aromática, como se ela o fizesse por flerte e mimo.
»Após o qual essa mísera besta dorme e se acha presa dum sonho tão profundo que os caçadores, espreitando ali perto, espiando sinal da moça, têm tempo de sobra para se aproximar com laços e cordas.»
O unicórnio é, por conseguinte, o símbolo da confiança e do amor traídos e, por extensão, do amor jamais recompensado.
Por tal razão a Idade Média tinha suas damas-unicórnios e seus homens-unicórnios.
Por definição, o unicórnio era o namorado ao qual se obrigava às piores humilhações por brincadeira, unicamente por prazer e diversão. O protótipo se acha em Lancelot ou le chevalier à la charrette et la soumission à la dame (O cavaleiro de carroça e a submissão à dama), de Chrétien de Troyes.
O SÍMBOLO DO BOSQUE
Se supõe que o unicórnio é branco de corpo e que é o emblema da castidade. Está, a miúdo, associado à lua nova ou crescente, que parece molhar seu corno na água.
«Os antigos mapas alquímicos, escreveu Bertrand d'Astorg, simbolizam comumente a Lua, colocando um corno único na mão direita da figura que a representa».
Outro símbolo está misteriosamente vinculado ao animal: A árvore ou o bosque. «A árvore fica a explicar, escreveu Odel Shepard.
Pra capturar o unicórnio a donzela deve estar num bosque ou sob uma árvore. Se encontram, com frequência, sobre os selos cilíndricos assírios os animais unicórnios representados junto a uma só árvore estilizada... árvore cosmogônica, árvore da fortuna, árvore do mundo?»
Quiçá podemos esclarecer este enigma mediante uma explicação que, por acréscimo, servirá de preâmbulo a outro mistério fascinante: O da cidade de Luz.
O bosque com o unicórnio representa o labirinto no qual nos perdemos, onde nos escondemos, o refúgio secreto da Idade Áurea, a cidade de Luz (cidade cerrada em toda parte, ovo filosofal, matraz) onde residia o ser, na etapa fetal, antes de nascer homem.
O bosque simboliza o retorno ao Antro original (o ventre materno) e também o Outro original que éramos antes de vir ao mundo.
O homem, sobretudo quando é jovem, experimenta, às vezes, a necessidade de se esconder, dissimular, entrar num bosquete, entre matagais, onde poderá surpreender a todos sem ser visto. É o retorno ao ventre materno, a andadura do unicórnio.
O menino em perigo corre se refugiar no regaço de sua mãe. O proscrito, o acossado, busca refúgio no bosque, no maquis, que são como labirintos.
Existe também uma relação entre o unicórnio e a gruta do ermitão no bosque. Dada sua ambivalência, o unicórnio também pode representar o ser primevo, o hermafrodita (antes da diferenciação) buscando seu paraíso perdido.
O UNICÓRNIO, DAMA DO OUTRO MUNDO
Ainda mais iniciaticamente, o unicórnio é o símbolo duma cidade de Luz sem saída, que possui e simboliza a jovem de portas cerradas (a donzela virginal). Nesse sentido o unicórnio é a Dama da cidade de Luz e a Dama do labirinto. Pertence, por natureza e por beleza, à Idade Média do maravilhoso, do bosque de Brocelândia, à cidade construída sobre e sob do mar. Ou ao meio do lago que se franqueia por uma ponte invisível.
O unicórnio é a irmã gêmea da Dama do Lago, de Viviana e de Melusina. Em seu reino secreto, como no da rainha Rianão da mitologia céltica, o tempo cessa de transcorrer estando perto dela ou a ouvindo falar.
E regressamos à cidade de Luz com suas formidáveis muralhas, tão espessas, tão largas, tão altas, sem ameia, sem janela, sem porta.
Mas, como entrar a uma cidade sem abertura?
No entanto, há de haver uma comporta. Há uma comporta em toda parte... Inclusive no labirinto que, de fato, pode ser um universo de duas dimensões: Comprimento e largura. Nesse sentido se pode escapar por acima, como Dédalo, ou por abaixo, como o rio, a serpente, a quimera!
Nessa aventura iniciática em forma de labirinto, o unicórnio é, quiçá, o carneiro de corno único que conduz, por uma só via, até o destino dos Filhos da Luz, o que sabe transcender.
Seu corno tem o poder de transmutação. Por isso é essencial que o adepto cubra de linho branco pra domesticar o animal e furtar seu labirinto, como mataria o Dragão, a Serpente, com o mesmo desígnio.
A religião judaico-ocidental cristianizou essa imagem do unicórnio o transmutando em cervo.
O cervo crístico, perseguido no bosque, se detém, se volta, encara seus perseguidores, os caçadores e, pela virtude de seus olhos de amor, lhes insufla a fé.
O unicórnio era, com frequência, carranca de proa sobre os batéis de alto mar mas, como a sereia, passava por os arrastar ao fundo.
Se assegura que, antanho, nos tempos do maravilhoso, marinheiros se atiraram à água, estavam seguros de ver nela o palácio das sereias e dos unicórnios e habitar ali no luxo dum harém oriental.
Também antanho, se atiravam na água dos lagos pra ver a Dama, Morgana, Viviana ou Melusina, e aqueles que acreditavam não morriam, senão que viviam eternamente na cidade do fundo da água.Uma cidade ou um reino do que não se poderia escapar nem sequer morrendo, porque o princípio da imortalidade parece inerente ao dos Outros Mundos.
E regressamos à cidade de Luz, a das muralhas infranqueáveis e dos habitantes imortais.
Denominador comum ao Unicórnio, a Melusina, a Morgana, a Viviana, à Dama do Lago e à cidade de Luz: A imortalidade. Quer dizer: O alimento do Graal que era o caldeirão mágico de Korridwen, com seu néctar do labirinto e da imortalidade, do que Gwyon havia tragado uma gota. Que era, também, o jarro adornado de Amrita resultante do batido do Oceano primordial (o mar de leite), com seu elixir que jugulava pra sempre a morte, pelo menos pros deuses.
Os grandes arcanos sempre se relacionam por laços tênues mas poderosos que são invisíveis ao profano.
O alimento do Graal, do Caldeirão, do Jarro adornado védico é o sangue da Serpente, do dragão Fafnir que, na mitologia escandinava, dava a iniciação e a compreensão da linguagem dos pássaros.
Quem bebe o sangue do Iniciado, do Rei, de Deus, adquire seus privilégios. Ocorria o mesmo com o sangue do unicórnio, ao qual era necessário matar pra lhe roubar algo precioso, divino. Seu destino era, pois, perecer, encantar mas perecer, iluminar mas perecer. Quiçá era, também, seu destino arder sobre uma fogueira, como a fênix.
A vida e a morte são um todo, indissoluvelmente ligados a um e outro destino que pode tomar a aventura humana: Se apartar da via, obedecer à contestação de intelectual ou se integrar à ordem no rigor do tempo cósmico. Ilustra este axioma um dos mais belos contos esotéricos imaginado por um povo africano.
Capítulo XIII
A MISTERIOSA CIDADE DE LUZ
Segundo certas tradições o menino, ao nascer, aparece com uma luz sobre a frente, a Estrela, que é a lembrança da vida anterior, o terceiro olho, ainda não oculto, aberto sobre o domínio do tempo. Mas o anjo do nascimento, que é também o da morte, apaga essa luz com a finalidade de provocar a queda fora da eternidade que o menino deve padecer quando escapa ao Grande-Outra Parte.
Abreviando: O nascimento representa a ruptura com um imenso passado do qual o ser é primitivamente depositário, mas que deve rechaçar, e com um universo do qual deve sair, universo identificado com a mágica cidade de Luz.
Na tradição a cidade de Luz (quiçá a Suz de Abrão que teria se convertido, mais tarde, na Betel da Palestina) tinha a forma da amêndoa mística (a vulva, o éden da mulher = amêndoa, em hebreu) e suas muralhas sem porta nem janela, sem abertura, ascendiam ao céu a uma altura vertiginosa. Quem vivia nessa cidade cerrada nunca morria e gozava da Idade Áurea. Os que desejavam morrer deviam se atirar do alto das muralhas do recinto ao mundo onde existe a morte.
AS ALTAS MURALHAS DA CIDADE
A cidade de Luz é uma irrealidade e, ainda: Uma imaginação maravilhosa, digna de entrar ao palácio de nossos sonhos e pensamentos, já que submerge no mais profundo, no âmago do esoterismo. Mas é, também, uma realidade na qual o homem deve esquecer que foi homúnculo, ao homúnculo que foi símio, ao símio que foi marsupial, ao marsupial ictiossauro e, assim, sucessivamente, remontando à alga, o vírus, o calcário, o hidrogênio, o carbono, a onda, a luz primordial, a treva hiper luminosa que se supõe ser Deus-universo e, remontando ainda mais longe, na imensidão que nem podemos imaginar. Ao menos se tomarmos como referência a evolução darviniana.
Mas o problema e o mistério continuam os mesmos se cremos que o homem é um ser privilegiado e uma imagem, uma substituição de Deus ou seu reflexo num dado lugar. Seja o que for, em iniciação se ensina que é proibido levantar o véu de Ísis, roubar os frutos da árvore do labirinto, o fogo celeste (anátema contra os iniciadores antigos, com freqüência chamados extraterrenos contra os anjos, contra Lúcifer, etc.).
Simbolicamente, os antepassados dalguns dentre nós, Adão e Eva foram expulsos do Éden por comer a maçã e, por isso, cortaram as raízes que tinham em comum com Deus.
O Éden é o paraíso, cerrado em toda parte, onde se goza a beatitude suprema, é o sexo da mulher, sua vulva, onde, quando se mergulha nela, o homem goza uma graça inefável, duma eternidade, duma imortalidade instantânea que perde ao se retirar dela. Perder o paraíso é, de certo modo, vir ou regressar ao mundo. É sair sem que se saiba, explicitamente, se ao exterior ou interior!
Em Tiauanaco, Bolívia, sobre o altiplano andino, duas grandes portas de pedra, a célebre porta do Sol e a porta da Lua, recortam suas aberturas sobre o céu, mas ninguém saberia dizer, ao as franquear, se entra ou sai dalgum sítio.
O Éden é a amêndoa, a matriz por onde o menino abandona seu universo particular, o país dos sonhos e da desgraça, pra entrar ao mundo cotidiano do azar.
Então, franqueia a muralha. É essencial, se nos atemos à tradição e à ciência, que o menino, quando entra a nosso mundo, esqueça seu passado muito anterior, olvide o que há no Éden, além da porta entreaberta da vulva materna, da comporta de comunicação.
— Deus não lhe proibiu esse labirinto?Não o expulsou do Paraíso?
DEUS E OS HOMENS: O MESMO ROSTO?
Parece que existe um paradoxo na criação do homem, de acordo com o texto bíblico.
Deus o criou a sua imagem. Essa revelação foi repetida três vezes. «Deus diz: Façamos o homem a nossa imagem, a nossa semelhança e que domine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre o gado, sobre toda a terra e sobre todos os seres que nela se movem (Pentateuco, por Elie Munk, rabino).
'Deus criou, pois, o homem a sua imagem. O criou à imagem de Deus. O criou macho e fêmea'. (Gênese I, 27.)
Deus frisa adrede, três vezes, que o homem é sua imagem, sua semelhança. O texto é claro, concreto sobre esse ponto e significa que ele, criador, e sua criatura são semelhantes, são um organismo e universos paralelos de dimensões diferentes, sem dúvida, mas de estrutura fundamentalmente idênticas.
É também o conceito dos iniciados: O que está embaixo é como o que está encima. Só faltam os parâmetros, o retrocesso pra refinar a similaridade, calcular a dimensão, o volume e o potencial. Nesse sentido os homens e Deus são de natureza privilegiada (o deus que está em mim saúda o deus que está em ti: Saudação dos índios), em duas escalas diferentes: Pra Deus com uma potência n e pra sua projeção humana somente a potência 1, igual a ela mesma.
O macrocosmo e o microcosmo.
Com, não obstante, certa diferenciação original: Deus eterno, existente por seu próprio pensamento, por sua própria consciência, não saindo de sua cidade de Luz; e o homem, que vem do mundo perceptível ao franquear a muralha. Esse matiz explicaria, quiçá, a divindade total dum e a divindade reduzida doutro, excluindo os seres excepcionais, que não nascem pela vulva da mãe, senão escapando pela outra saída.
Os essênios e Jesus estigmatizaram o nascimento normal: Vergonha àquele que saiu das entranhas duma mulher. Se lê no evangelho de Tomás, versículo 83, em Mateus, XXIV, 19 e em Lucas, XXIII, 29:
— Bem-aventurado o ventre que não engendrou. A desaparição da estrela frontal seria, por conseguinte, a sanção infligida ao homem a partir de seu nascimento.
Na mesma tradição simbólica, Deus não tolera que o homem saiba tanto quanto ele, ambicione a deificação e, em conseqüência, foram elaborados tabus:
— Uns ciclos encerram as grandes aventuras humanas e diluem as civilizações mais florescentes na sombra do olvido pelo fogo da terra, do céu ou pela água dum dilúvio.
— O tipo humano é cerebralmente provido, como os magnetófonos, dum sistema que apaga o saber anterior enquanto registra os fatos vividos. Ou seja, o labirinto do passado está escondido nas zonas neurais do cérebro que nunca são solicitadas.
— As possibilidades da inteligência humana e suas aquisições científicas estão programadas desde o nascimento e limitadas por um capital de 13 mil milhões de neurônios não renováveis com, ao contrário, uma perda irremediável, a cada dia, de cem a trezentas mil dessas células. A faculdade intelectual do homem estão, pois, programadas pra durar uma média de oitenta anos.
É de observar que os cem mil milhões de células normais do organismo humano têm a propriedade de se renovar aproximadamente cinqüenta vezes. Unicamente, e se adivinha o motivo, as células da inteligência não têm este privilégio, senão e de modo aleatório, mediante seus prolongamentos, as dendritas e a axona.
O ÉDEN ADORADO E MALDITO
O ser humano, inconscientemente ou não, se submete àqueles imperativos de natureza aparentemente madrasta que, tão pronto o castiga como tão pronto o louva. Por exemplo, teme e amaldiçoa os vulcões e os terremotos mas busca as zonas mais perigosas pra desenvolver suas atividades e suas civilizações. Porque, de qualquer maneira, a Terra é Géia, a máter, e se entreabre, às vezes, sua vulva pra voltar a tragar o que pôs no mundo, o homem não pode esquecer que é sua mãe e que lhe deu, assim mesmo, a luz.
Com um servilismo e uma inconsciência aparentes, o homem, se bem insulta ao homem o chamando vulva. Não se atreve a atirar uma mirada indiscreta, desrespeitosa à de sua própria mãe e, paradoxalmente, cai em adoração ante a vulva das outras mulheres.
Seu paraíso mais tangível será o de penetrar nela, de regressar, dalguma maneira, ao universo de beatitude que perdeu ao nascer.
E o elemento motor mais poderoso das grandes ações humanas é, e foi quase sempre, o desejo de se destacar ante uma mulher, de a merecer e conquistar.
Não obstante, e contrariamente ao apagamento da estrela frontal do passado, sabemos que nascemos sendo uma centelha, ou melhor, uma imagem de nosso pai, de nossa mãe, de nossos avós e de toda a casta de homens até o Adão primevo, se existiu, até o próprio Deus.
Sabemos que uma parte da história passada, que o cabelo da mãe, os olhos do pai, os defeitos do avô ou seu gênio pro desenho ou a matemática, são transmitidos, legados ao menino pelo código genético.
Tudo parece indicar que esse sagrado legado genético aprisiona, seqüestra uma aventura passada remontando à incognoscível origem do tempo.
De certa maneira todos sabemos. Sabemos que fomos o bandoleiro Cartuche, o cardeal Richelieu, Carlos Magno, um símio e um vírus ou algum extraterreno vindo do céu e, antes, um deus cósmico: Lúcifer ou Prometeu.
Sabemos mas é impossível extirpar esse famoso saber, seqüestrado, sem dúvida, nas zonas neurais que nos são inacessíveis ou que nos é proibido solicitar. Por quê? Só temos uma vaga idéia.
QUANDO A ESTRELA NÃO ESTÁ APAGADA
No entanto a tradição assegura que alguns seres privilegiados guardam, ao nascer, sua estrela sobre a frente e conservam assim a lembrança, seja de suas vidas anteriores (o que é muito arriscado), seja do passado em geral (o que parece mais sensato).
Com uma condição: Que esses privilégios não nasçam no éden de sua mãe, senão por seu costado ou pela coxa ou a frente do pai, ou pelo costado duma serpente.
Em resumo, é necessário um nascimento milagroso, sem ruptura, sem expulsão do Paraíso. Um nascimento virginal, segundo se diz impropriamente. O que nasce pelo ventre fica desprovido de sua eternidade, enquanto que o que nasce por qualquer outro sítio conserva sua estrela, quer dizer, o privilégio, a integridade de seu passado.
Átis, que é o filho duma árvore, a mirra (ou Mirra, a princesa incestuosa?) acessa o mundo por um rasgadura no costado de sua mãe.
Minerva sai toda armada do crânio de Júpiter e Dionísio nasce do coxa do deus do Olimpo.
Buda atravessa o flanco direito de sua mãe, a rainha Maia, sem causar dor.
O menininho saiu do flanco direito de sua mãe, sem mancha, cheio de ciência e da lembrança de existências anteriores», escreveu Maurice Percheron (Le bouddha et le bouddhisme (O buda e o budismo), pág. 19. Coleção Maîtres spirituels (Mestres espirituais), nas Edições du Seuil).
Na tradição cátara Jesus vem ao mundo pela orelha de Maria e conserva, por conseguinte, a estrela da lembrança. De fato, nenhum evangelista, nem Lucas, o mais prolixo, proporcionou informação a esse propósito. Está na linha tradicional pensar que Jesus não veio ao mundo passando pela porta estreita de Maria sempre virgem. Saiu, provavelmente, como diz a tradição cátara, ou pelo costado. Ou seja, pelo seio ou coração de sua mãe.
Fica bem entendido que especulamos sobre o plano simbólico já que, assim como o demonstra a história escrita nos papiros egípcios 1.500 anos antes de seu nascimento,Jesus é um mito, uma ressurreição de Osíris e tanto um como outro não tiveram existência real.
Mencionemos que, pra Christia Sylf, Maia e Júpiter, ao ser deuses, as diferentes partes de seus corpos expressam ou representam diferentes lugares do universo.
A SERPENTE AMIGA DOS HOMENS
Os iniciadores-serpentes dos homens antigos foram, muito provavelmente, confundidos com o aparelho voador, dragão ou serpente emplumada que os ejetara de seus flancos. Outros heróis, profetas ou semideuses nasceram duma mãe serpente, dum dragão ou atravessando o tabique cerrado duma amêndoa ou duma fava.
Esses privilégios, por isso, têm a lembrança do passado e, inclusive, o dom da clarividência pro porvir.
Tradicionalmente a Serpente iniciadora de Adão e Eva foi a primeira que utilizou o Verbo.
Para nos enganar? Não temos certeza!
A Serpente foi a primeira a falar. Talvez procriou a primeira humanidade do longínquo remoto. Conhecia o mistério do passado, presente e futuro e quis iniciar os homens.
Foi o que fizeram Prometeu, Lúcifer, Pta, Lugue, Oanes... contra a proibição divina!
A serpente foi, também, um extraterreno-viajante vindo de outra Parte como Queltzalcoatle, Baal, Astartéia, Oanes, Melusina?
O certo é que se converteu no símbolo do tesouro, da caverna, da água, da iniciação, o Mestre, o Antigo que sabe o que passou antanho. O símbolo da eternidade.
A serpente é aquele que renasce, que faz pele nova (de fato, muda de pele).
Sanchoniatão, no livro mais antigo do mundo (História fenícia) diz que pertence à matéria ígnea porque há nela «uma velocidade que nada pode ultrapassar a causa de seu sopro.
Acrescenta o autor fenício: «Proporciona a celeridade que quer às hélices que descreve em sua andadura... Os egípcios lhe acrescentam uma cabeça de gavião por causa da energia dessa ave...»
Entre os congoleses a serpente é o veículo dos deuses. É o totem dos deuses venusianos do México e do Próximo Oriente e o inimigo hereditário, com a Estrela (Vênus), dos hebreus e dos cristãos.
É Lúcifer portador da Estrela, a Quimera de fronte adornada com um carbúnculo, Satã o difamado, Melusina Mãe-Luz...
Não é a Serpente de Estrela da mitologia, senão a Serpente-Estrela.
Se acreditou, muito tempo, que as víboras nasciam pelo flanco de sua mãe, o que lhes evitava esquecer suas vidas anteriores!
Esse símbolo de eternidade vinculado à serpente é representado pelo réptil que morde a própria cauda, pelo uróboro.
O URÓBOROS, ÉQUIDNA E MELUSINA
O uróboro e os dragões guardiões do tesouro, como as Serpentes, deviam sua eternidade a seu tipo de nascimento e a sua faculdade de viver não só várias, senão uma infinidade de vidas.
O uróboro que morde a própria cauda é o ovo filosofal dos alquimistas, a esfera primordial do móvel, o círculo, a alfa e a ômega.
Na mitologia grega Équidna, a ninfa imortal, é uma mulher admirável na parte alta do corpo e víbora a partir da cintura.
É a antepassada de Melusina, a maravilhosa fada-serpente do Poatu.
Équidna e Melusina somente engendraram heróis-monstros, entre eles a ninfa-víbora, a Esfinge, que, também, expõe o enigma da imortalidade e do passado.
Elas, sem dúvida, não pariram pela vulva, ao menos não se disse que Équidna teve uma, assim como, tampouco, Melusina quando se metamorfoseava em serpente.
Melusina vivia no universo singular das fadas, espécie de cidade de Luz cujos habitantes tinham o poder de realizar toda sua imaginação. Para conhecer o amor e a morte, elegeu sair de sua cidade. Era, por conseguinte, a Estrangeira, a que vinha doutra Parte, como os anjos da Bíblia e com o mesmo desígnio: Conhecer os terrenos e engendrar com eles. Viveu um formoso, terrível e estranho idílio, construiu igrejas muito cristãs, castelos fortificados e belos, e se converteu em lenda pra contar na noite nas veladas e fazer sonhar.
Seu mito, sua fonte, seu tesouro, sua fruta estão diretamente ligados à iniciação: Sua ciência, sua beleza imperecível, seus misteriosos companheiros de milagre e sua natureza de mulher-serpente alada, fazem pensar em Istar, em Quetzalcoatle e nos demais deuses venusianos baixados à Terra pra iniciar, ensinar, maravilhar antes de regressar a seu planeta original.
Melusina é o pensamento imortal e divino quando está na cidade cerrada do cérebro, mas que se converte em equívoca e aproximativa quando, franqueando as muralhas, se materializa no Verbo.
Várias famílias da alta nobreza européia e a do imperador do Japão têm, em sua tradição, como mãe original uma serpente que um de seus antepassados encontrou num bosque.
Sempre a união se fez com a promessa formal do noivo de não tentar ver sua esposa de em parto mas, como é lógico duvidar, a promessa não foi cumprida. Tanto é assim que a mulher-serpente sempre pariu mortais. Desse modo foi contado, simbolicamente, o mistério da aliança fantástica dos homens e das serpentes que pudesse dar como resultado uma humanidade de imortais dotados da faculdade de se lembrar todas suas vidas anteriores.
A VIOLAÇÃO DA DONZELA
O mito de Lúcifer e de Melusina, que franquearam as muralhas para se converter em mortais, é também o do nascimento dos homens, primeiro encerrados na cidade das portas cerradas e que, por sua expulsão, conhecerão o amor mas perderão a lembrança de seu passado.
É Eva saindo do costado de Adão na mitologia judaico-cristã.
É Fausto em busca de uma donzela totalmente pura pra extrair dela, mediante não se sabe que estratagema, a virtude que supõe tradicionalmente sua virgindade, com a finalidade de a transferir a um menino.
Esse menino seria uma reencarnação do velho doutor alquimista que açambarcaria, assim, em seu benefício, o labirinto sublime, total do existente passado.
A Virgem, por definição, guarda sua muralha, instala o ferrolho em suas portas múltiplas. Percebe a investida mas rejeita se deixar penetrar.
Quando aceita (ou é forçada) perde sua eternidade, se converte em mortal mas assim tem acesso ao amor.
O varão ataca. A virgem defende.
Assim se explicam as virtudes superiores, com freqüência inatas, entre os meninos nascidos duma violação.
Uma certa crença motivava as violações nupciais da Idade Média, quando o marido legítimo se disfarçava, penetrava, na noite, na câmara de sua jovem esposa e, se fazendo passar por outro, a violava pra procriar um filho superior.
Essas reflexões pertencem, propriamente, à alta alquimia, a seu matraz-matriz, à lenda de César e de Guésar de Lingue saindo, em cesariana, do ventre de sua mãe e se convertendo, por este fato, o primeiro num herói excepcional, e o outro num profeta dotado de clarividência, como o feiticeiro Merlim (a mãe de Guésar de Lingue era naga, ou seja, serpente).
PANDORA
Ao ampliar o círculo de prospecção se encontraria uma analogia entre a cidade de Luz e Pandora, Eva e Lilite da mitologia grega.
No tempo de Cronos os deuses e os homens celebravam festejo em comum.
Zeus Olímpico pretendeu impor sua supremacia aos homens e determinar a parte que correspondia aos deuses na ocasião dos sacrifícios.
Encarregado da partilha Prometeu escondeu os melhores bocados num couro de boi e os ossos sob uma capa de gordura que escolheu Zeus quem, furioso, retirou aos homens o fogo inextinguível.
Então Prometeu foi à ilha de Lemnos, onde estavam as forjas de Hefesto, furtou uma centelha do fogo divino, a escondeu num junco e a deu aos homens. Zeus, irritado com essa segunda ofensa, enviou ao astuto ladrão um presente envenenado: A formosa Pandora, modelada por Hefestos, o sublime artesão, dotada de vida por Minerva e de todas perfeição pelos outros deuses.
Pandora portava como dote um recipiente misterioso, hermeticamente fechado que, de fato, continha todos os males que deviam afetar a humanidade.
O amo do Olimpo esperava que Prometeu desposaria essa criatura de sonho mas o herói desconfiou e foi seu irmão, Epimeteu, quem a tomou por esposa. Pandora, por curiosidade, levantou a tampa do recipiente, deixando assim escapar e se espalhar pela Terra os cataclismos e as calamidades.
Somente a esperança permaneceu detida sobre as bordas e não levantou vôo. Foi assim que, depois da Idade Áurea e o paraíso terreno, a desgraça, com a mulher supremamente bela, apareceu entre os homens.
Sempre furioso, Zeus desencadeou um dilúvio (chamado de Deucalião) pra aniquilar a humanidade mas, uma vez mais, Prometeu desbaratou o plano do deus convidando seu filho Deucalião e a sua nora Pirra a construir uma arca pra sobreviver à inundação. Num certo sentido se pode pensar que Pandora é uma Melusina.
Veio ela dum Outra Parte diviso, não franqueia a saída pela porta plebéia, senão que é atirada por cima das muralhas da cidade de Luz e fica privada dessa memória acáchica, segundo Rudolf Steiner, que representa a estrela do recém-nascido. Sem dúvida, inconscientemente (embora se a tenha acreditado pérfida), abriu o recipiente e obedeceu às ordenes programadas no Outra Parte divino.
Se produz uma espécie de transferência dum mundo ao outro, o Outra Parte eliminando seus resíduos psíquicos ao os projetar por cima de suas muralhas.
A Idade Áurea, se existiu, talvez não pôde subsistir mais que mediante essa operação de limpeza e de eliminação que lembra, de modo estranho, a dos barris de dejeto radiativo dos quais nossa civilização quer se livrar pra continuar vivendo.
(Texto de Robert Charroux - continua)
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