Com efeito, os Egípcios consideravam a superfície terrestre (e não a Terra) como um plano horizontal de percepção e o Cosmos como circular ou curvo. (Túmulo de Ramsés IX).
Segredos bem guardados e exigências rituais ”Isto”, afirma o capítulo 162 do ”Livro dos Mortos”, ”é um grande livro secreto. Não o deixeis ver a qualquer pessoa, seria um ato detestável! Aquele que o conhece e guarda segredo,continua a ser. O nome deste livro é a soberana do templo escondido”.
Estas recomendações, formuladas em intenção tanto dos práticos da magia como dos profanos imprudentes, não proibiam aos adeptos o acesso aos segredos. Impunham-lhes o silêncio em relação a indivíduos inaptos ou desastrados. Sabemos como esse livro e os segredos nele contidos foram comunicados aos
mágicos do Egito.
O deus Tot reunira os mestres em magia e entre eles foi recebido o postulante. Este lavou a boca, ingeriu natrão(carbonato de soda natural; servia aos Egípcios para conservar as múmias.) e provou que era capaz de se juntar à Enéade, a corporação das nove potências criadoras. Isso subentende que ele era capaz de levar a cabo, com sucesso, as experiências de base. Junto do mestre em magia que preenchia a função do deus Hórus, com uma máscara de falcão, o postulante teve a revelação das palavras e das fórmulas que datavam da época em que Osíris, o antepassado primordial, ainda estava vivo e reinava na terra do Egito.
A primeira prova para se poder concluir que o postulante compreendeu bem o que lhe foi confiado, seria a de vencer uma víbora de cornos. Sangue-frio, conhecimento da fórmula sonora que hipnotiza o réptil, segurança manual para o poder dominar: o futuro mágico é confrontado com a sua morte.
Tendo triunfado na prova física, segue-se a revelação metafísica. Os mestres em magia revelam ao adepto que os dois deuses tão diferentes, mesmo tão opostos - Ré, o luminoso, e Osíris, o tenebroso -, são apenas um e o mesmo ser.
É no interior da Casa de Vida que esse deus único é evocado, sob o nome de ”Alma Reunida”, simbolizado por uma múmia envolta numa pele de carneiro. Contemplando-a, o novo adepto reunia o seu próprio espírito e entrava no caminho da ressurreição.
Só um ser em estado de pureza pode aceder ao conhecimento dos segredos e da Unidade. É impuro o que é anti-harmônico, antivital. O homem está enredado nos próprios laços, não é naturalmente transparente à vida. A magia ensina-o a libertar-se dos entraves que ele impõe a si mesmo. A pureza exterior, a simples higiene tão apreciada pelos sacerdotes do Egito, é uma manifestação tangível da pureza interior. Por isso, o mágico lava-se com frequência. Com a boca purificada, as palavras que profere também o estão.
O lavar das mãos, assim como o lavar dos pés, desembaraçam-no de energias nocivas. ”Os teus pés são lavados em cima de uma pedra, na margem do lago do deus”, diz o capítulo 172 do ”Livro dos Mortos”. Este ato ritual era portanto considerado suficientemente importante para ser executado no interior do templo.
Também se lavavam os pés de um rei no decurso de uma grande cerimônia, e é mais ou menos certo que esse rito real inspirou a cena dos Evangelhos em que Cristo dá uma grande importância ao ato de lavar os pés.
Uma vez purificado, o corpo é digno de receber um vestuário ritual. O capítulo 117 do ”Livro dos Mortos” é uma fórmula específica para vestir o trajo uab, ou seja ”o Puro”, um verdadeiro ”corpo novo”, de brancura imaculada, que o mágico deverá evitar enodoar com atos contrários à harmonia.
Recebendo esse trajo, o adepto recolhe-se e implora às divindades para que afastem dele as impurezas espirituais e corporais, que o trajo de pureza lhe seja oferecido para toda a eternidade.
Esta tradição será preservada até às épocas mais tardias da civilização egípcia, uma vez que num papiro grego da Biblioteca Nacional (Paris), se pede ao mágico que se vista com um tecido leve, que cante um hino e recite uma fórmula em presença de um ”médium” que está diante do Sol.
Hoje, tal como ontem, não se pratica a magia de qualquer maneira nem em quaisquer condições.
As exigências rituais estão assim indicadas no Livro da Vaca do Céu, inscritas em colunas de hieróglifos nos túmulos reais do Império Novo:
”Se um homem pronuncia esta fórmula para seu próprio uso, deve ser untado com óleos e unguentos, tendo na mão o turíbulo cheio de incenso; deve ter natrão de uma certa qualidade atrás das orelhas, tendo na boca uma qualidade diferente de natrão; deve estar vestido com duas peças de roupa nova, depois de se ter lavado na água da enchente, ter calçado sandálias brancas e ter a imagem da deusa Maet (a Harmonia Universal) pintada na língua com tinta fresca”.
Outras prescrições elementares: ”Que esta fórmula seja lida quando se esteja puro e sem mancha, sem ter comido carne de rebanho ou peixe e sem ter tido relações com mulher”.
Assim preparado, respeitador de regras estritas, o mágico está apto a traçar no solo o desenho sagrado em que se inscrevem, sob a forma de símbolos, as forças que manipula.
Na ”sala das duas maet (quer dizer, das duas verdades, a cósmica e a humana), vestido de linho, coberto de galena, devidamente purificado, ungido com mirra, calçado com sandálias brancas, o mágico faz a oferenda de bois, galináceos, resina de terebentina, pão, cerveja e legumes. Depois traça o desenho ritual em conformidade com o que se encontra nos escritos secretos, sobre um solo puro, coberto de um branco extraído de um terriço que não tenha sido pisado nem por porcos nem por cabras.
Os construtores da Idade Média não agiram de modo diferente ao traçarem o seu ”quadro de loja”, que em algumas lojas iniciáticas da Maçonaria contemporânea é efetivamente recriado a cada sessão de trabalho.
O mágico é pois, desse modo, um verdadeiro Mestre-de-Obras, designado para conceber um plano. Cinge em torno da fronte ”a faixa do conhecimento” e faz esta espantosa declaração: ”Os meus pensamentos são grandes sortilégios mágicos que saem da minha boca”.
Antes disso passou por um rito de ressurreição durante o qual se deita numa esteira de junco, tornando-se uma múmia viva que entra magicamente em contacto com as potências superiores. O mágico revive a paixão de Osíris, regressado do além-morte.
O tribunal divino, os guardiões das portas, o barqueiro Se um mágico recita o livro secreto, sobre a terra, em favor de um homem, este não será despojado pelos gênios que, em todos os lugares, atacam quem cometeu o mal. Não será decapitado, não morrerá sob a faca do deus Set, não será conduzido a nenhuma prisão. Entrará serenamente no tribunal divino que espera todos os seres no crepúsculo da sua existência terrestre, e dele sairá justificado, desembaraçado do terror da injustiça.
Eis, pois, um dos grandes serviços prestados pela magia: permitir ao justo apresentar-se de cabeça erguida, sem temor, diante dos seus juízes.
Alguns egiptólogos, sentindo talvez preocupações com o seu próprio caso, acusaram os Egípcios de serem ”embusteiros”: teriam enganado os deuses, abusando da magia. Na realidade, isso demonstra uma ingenuidade que nos deixa desarmados.
É a magia do conhecimento que o tribunal põe à prova, não os
”truques” de um ilusionista de feira. Se o homem não possui as leis desta magia, está efetivamente desarmado e condenado de antemão a reviver um novo ciclo material, sem que isso implique uma reencarnação no sentido habitual do termo.
Outros perigos espreitam o adepto nas estradas do outro mundo. Para passar as quatro fronteiras do céu, o viajante deve convencer os guardas a deixarem a via livre, recitando-lhes as palavras daqueles cujos lugares são secretos.
Numerosos capítulos dos ”Textos dos Sarcófagos” evocam essas personagens sinistras, frequentemente armadas com facas, velando lagos de profundidades insondáveis e caminhos que se alongam nas trevas, cruzamentos onde as pessoas se perdem. Só a magia aniquila o poder desses gênios inquietantes.
Uma outra personagem exige do viajante do Além qualificações mágicas de primeira ordem. Trata-se do barqueiro, que detém o tesouro entre os tesouros: a barca, graças à qual se pode atravessar as grandes extensões aquáticas dos campos celestes. Quando o iniciado exige utilizar a barca, o barqueiro submete-o a um interrogatório apertado:
”Quem és?”, pergunta.
”Sou um mágico”, responde o adepto, que em seguida afirma estar completo, equipado, dispondo do uso dos membros.
Esta afirmação é considerada insuficiente. Terá de provar a sua qualidade de mágico enunciando as diferentes partes da barca e as suas correspondências mitológicas e esotéricas. O profano não tem qualquer possibilidade de conseguir essa proeza.
Em troca, o mágico formado na profissão triunfa: comandará as cidades do Além, fará o inventário das riquezas do outro mundo e dará aos pobres aquilo de que têm necessidade na Terra.
Quer dizer que o estatuto social do mágico é elevado: não é apenas um ”intelectual” mas também um gestor cujas competências são postas ao serviço dos mais desfavorecidos, embora se trate de um processo econômico dos mais estranhos.
O barqueiro, no entanto, ainda não está satisfeito. Exige do mágico um saber matemático traduzido na sua capacidade de contar pelos dedos. Cada dedo, cada ”ato numérico”, tem um profundo significado. Não se trata de um banal cálculo mental, mas sim de uma criação do mundo pelos Números e não pelos algarismos.
Outra questão que o barqueiro põe ao mágico: ”De onde vens?”, terá a seguinte resposta: ”Da ilha da chama”, quer dizer, do lugar do universo onde o Sol trava, em cada manhã, um combate vitorioso com os inimigos da Luz.
Oriundo do Sol, o mágico tem um temperamento de guerreiro e de vencedor. Já o provou.
Fato capital: o mágico revela ao barqueiro que descobriu o estaleiro naval dos deuses onde a barca se encontra em peças separadas. Não é ela análoga a Osíris desmembrado? Ora, o mágico sabe o que fazer para a reconstituir pois possui a arte suprema.
Vencido por tanta ciência, o barqueiro inclina-se. Preenche as exigências formuladas pelo mágico, põe a barca à sua disposição e regressa ao seu posto, esperando pôr à prova o próximo viajante.
“Aquele que conhece o livro de magia, pode sair para o dia e passear na terra entre os vivos. Nunca morrerá. A eficácia disso foi testada milhões de vezes”.
Cercam-no milhões de mágicos egípcios, eternamente vivos. ”Saíram para o dia”, na Luz, porque o poder mágico estava com eles e permitia-lhes afastar qualquer entrave à sua liberdade.
Esta ”contagem” muito especial exigiria só por si um longo estudo. Na nossa opinião, está na origem, ainda não assinalada, da Cabala numérica.
A ”saída para o dia” está presente no ritual celebrado quotidianamente nos templos. De manhã, quando o sacerdote abre as portas do nãos que contém a estátua divina, pronuncia estas palavras:
”Abertas estão as portas do céu, sem ferrolhos estão as portas do templo. A casa está aberta para o seu mestre! Que ele saia quando quiser sair, que entre quando quiser entrar!”
É essencial, no Além, caminhar sobre os pés e não sobre a cabeça.
Fórmulas mágicas evitam ao iniciado esse grave dissabor, permitindo-lhe percorrer normalmente os caminhos de água e de terra do outro mundo acompanhando a comitiva do deus Tot.
O mágico avança pelos belos caminhos do Ocidente sob a forma de um ser iluminado, tendo adquirido e experimentado todos os poderes sem deles se ter tornado escravo. É identificado com o jovem deus nascido no Belo Ocidente, vindo da terra dos vivos, desembaraçado da poeira do cadáver, tendo enchido de magia o coração e estancando a sua sede de conhecimento.
Navega para o campo de juncos, um dos campos celestes. Vai e vem pelos campos, cidades e canais do Além. Lavra, vê Ré, Osíris e Tot em cada dia, tem poder sobre a água e sobre o ar, pode fazer tudo o que deseja, como o iniciado da abadia de Teléme.
A vida está no seu nariz, não morrerá, vive no campo das oferendas em que estão fixadas as suas propriedades para a eternidade. Cumpriu o seu voto: tornar-se mágico.
(CONTINUA - Autor: CHRISTIAN JACQ)
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