1 de dezembro de 2012

A BARCA DE RA VIII

Durante o Império Novo (c. de 1550 a 1070 a.C.) a maior parte das fórmulas dos textos dos sarcófagos, acrescidas de diversas estrofes novas, passaram a ser escritas em rolos de papiro, os quais eram colocados nos ataúdes ou em algum local da câmara sepulcral, geralmente em um nicho cavado com essa finalidade. Quando postos no sarcófago costumavam ser encaixados entre as pernas dos corpos, logo acima dos tornozelos ou perto da parte superior das coxas, antes de serem passadas as bandagens.

Para os egípcios esse conjunto de textos era considerado como obra do deus Thoth. As fórmulas contidas nesses escritos podiam garantir ao morto uma viagem tranquila para o paraíso e, como estavam grafadas sobre um material de baixo custo, permitiam que qualquer pessoa tivesse acesso a uma terra bem-aventurada, o que antes só estava ao alcance do rei e da nobreza.

Tais textos, que formam um conjunto com cerca de 200 estrofes referentes ao mundo do além-túmulo, ilustrados com desenhos para ajudar o defunto na sua viagem para a eternidade, foram intitulados pelos modernos arqueólogos de Livro dos Mortos. Entretanto, conforme explica o especialista em história antiga, A. Abu Bakr, esse título é até certo ponto enganoso: na verdade, nunca existiu um "livro" desse gênero; a escolha das estrofes escritas em cada papiro variava segundo o tamanho do rolo, a preferência do adquirente e a opinião do sacerdote-escriba que as transcrevia. Um "Livro dos Mortos" médio continha entre 40 e 50 estrofes.

Com o aumento da quantidade e da complexidade dos textos, os sacerdotes se viram obrigados a escrevê-los antes que se perdessem da memória dos fiéis. Num processo de cópias sucessivas foram introduzidas variações e enganos, tanto por equívoco na leitura dos caracteres quanto por desleixo, cansaço do copista e acréscimos feitos pelo próprio escriba interessado em impor sua opinião. A cópia mais antiga encontrada foi escrita para Nu, filho do intendente da casa do intendente do selo, Amen-hetep, e da dona de casa, Senseneb. Esse valioso documento, avaliam os arqueólogos, não pode ser posterior ao início da XVIII dinastia (c. de 1550 a.C.). Ele faz referência a datas dos textos que transcreve e uma delas se refere aos idos de um dos faraós da I dinastia (c. de 2920 a 2770 a.C.).

No decorrer da XXI e da XXII dinastias (c. de 1070 a 712 a.C.) houve deterioração do trabalho de escribas e desenhistas e a qualidade do mesmo diminuiu sensivelmente, além de ter havido alterações no conteúdo dos textos. Outros temas não relacionados com o mundo dos mortos, como a criação do mundo, por exemplo, foram incluídos nos papiros dessa época. Às vezes o texto nada tem a ver com a vinheta que o acompanha. Nesse período também se estabeleceu o costume de encher com os papiros figuras ocas de madeira do deus Osíris, as quais eram colocadas nos túmulos.

Quando os papiros diminuíram de tamanho, passaram a ser armazenados em cavidades menores nas bases de tais figuras. Do final da XXII dinastia em diante, até o início da XXVI dinastia (664 a.C.) ocorreu um período de desordem e tumulto. Os sacerdotes perderam gradualmente o seu poder religoso e temporal e a crise provocou redução das despesas com cerimônias funerárias, tendo caído em desuso o costume de se fazer cópias do Livro dos Mortos.

Quando os faraós da XXVI dinastia assumiram o poder houve uma renovação dos antigos costumes mortuários, templos foram restaurados e textos antigos esquecidos foram relembrados e novamente copiados. No que se refere ao Livro dos Mortos tais cópias passaram a ser feitas de forma sistemática. Os capítulos passaram a ter uma ordem fixa, mantidos na mesma ordem relativa nos diversos papiros, ainda que alguns contivessem mais texto do que os outros, e quatro capítulos novos foram acrescentados, refletindo as novas idéias religiosas da época. Esses escritos continuaram a ser usados durante o período ptolomaico (304 a 30 a.C.). Nessa época, porém, só eram grafados os textos que se acreditava absolutamente necessários à salvação do morto. Textos que refletiam uma mitologia há muito esquecida eram ignorados.

O Livro dos Mortos é uma compilação póstuma, feitiços e litanias do Antigo Egito, escrito em rolos de papiro que eram depositados ao lado das múmias nas tumbas funerárias com finalidade de auxiliar o morto em sua viagem a uma região de trevas, como Aukert, ou “Mundo Subterrâneo”, ao longo de sua viagem ao Além. Os egípcios, porém, não chamavam os textos de Livro dos Mortos, mas “A Manifestação do Dia Sair para a Luz”, ao qual faz parte o “Papiro de Nu”.

Encontramos a saudações a Anúbis (deus da mumificação, rituais fúnebres e da vida após a morte)! É o guia que ajuda os mortos em todo o seu trajeto. Mas desengane-se quem pensar que ele os protege. A sua tarefa é apenas garantir que o julgamento seja justo. Os sentidos também são recuperados nesta nova vida pelo feitiço concretizado por este deus, o feitiço da Abertura da Boca (número 23 do Livro). Todos os sentidos (visão, paladar, tacto, olfacto e audição) trancados no processo de mumificação, são agora despertados.

Não estarás só na execução de trabalhos manuais se trouxeres o capítulo 6 do livro dos mortos. O espírito é replicado em pequenos clones que executarão esses trabalhos. Os hieróglifos sobre papiro ainda desvendam o encantamento que permite fazer face a uma das serpentes mais horripilantes do mundo. Há que parti-la ao meio para evitar que esta salte e engula a viagem.

O papiro permite observar não só a abra do código moral egípcio, que continha uma serie de “confissões” a serem proferidas, mas ilustra também o percurso final da viagem ao “Mundo Subterrâneo”. O papiro “folha 13” não traz ilustrada nehuma vinheta, apenas os hieróglifos em cursivo.

As cenas do julgamento do falecido fazem parte daquela rota e, portanto, de tais papiros. A decisão era tomada no Saguão das Duas Verdades, um grande salão no qual ficava uma grande balança destinada a pesar o coração do morto.

A solenidade é assim resumida pelo egiptólogo Kurt Lange: Osíris, senhor da eternidade, está sentado como um rei no seu trono. Tem em suas mãos o cetro e o leque. Por trás dele, mantêm-se habitualmente suas irmãs Ísis e Néftis. Na outra extremidade, vê-se a deusa da justiça, Maat, introduzir o morto ou a morta. No meio do quadro está desenhada a grande balança em que o peso do coração é comparado ao duma pluma de avestruz, símbolo da verdade.

A pesagem é confiada a Hórus e ao guardião das múmias, de cabeça de chacal, Anúbis. O deus Thoth, de cabeça de íbis, senhor da sabedoria e da escrita, anota o resultado da pesagem sobre um papiro, por meio de um cálamo.

Até à sala de julgamento, o morto enfrentará quarenta e dois deuses, guardiões de quarenta e duas portas diferentes. Para cada um deles, deverá renegar que cometeu diferentes pecados. Os critérios de avaliação seguem os juízos morais e a sua checklist tem por base os quarenta e dois mandamentos (muito semelhantes aos dez mandamentos presentes na Bíblia).

As palavras da inocência e defesa da confissão negativa encontram-se presentes no Livro dos Mortos: “Não causei sofrimento aos homens. Não empreguei violência contra os meus parentes. Não substitui a justiça pela injustiça.. Não trabalhei em meu proveito em excesso.. Não matei e não mandei matar.. Não monopolizei jamais os campos de cultivo”. Cada hesitação ou silêncio ativam as quelas (garras em forma de pinça) dos escorpiões que vigiam as portas.Se a sentença dos juízes for favorável, Hórus tomava-o pela mão e o conduzia ao trono de Osíris, que lhe indicava seu lugar no reino do além.

Essa é a cena que vemos na ilustração do alto da página. Ela pertence ao Livro dos Mortos de Hunefer, obra originária de Tebas e datada da XIX dinastia (c. 1307 a 1196 a.C.). Caso contrário, o morto estaria cheio de pecados e, então, seria comido por um terrível monstro, Ammut, o devorador dos mortos, que vemos na ilustração.

A vida eterna começa no túmulo, com uma viagem pelo mundo subterrâneo. Primeiro o 'Ka" ( Força Vital ), deixa o corpo, acompanhado após o enterro pelo "Ba" ( Alma ). Hórus conduz o "Ba" através dos portais de fogo e da serpente até o salão do juízo. Anúbis, pesa o coração do morto, sede de sua consciência, junto com a pena de Maat, ou da verdade. Osiris observa na condição de juiz. Se o coração for mais pesado do que a pluma, Amut, um monstro parte leão, parte crocodilo e parte hipopótamo o devora, condenando o morto a um coma perpétuo.

Se o coração equilibra com a pena da verdade, o "Ba" e o "Ka" reúnem-se para formar um "Akh", ou espírito, que emerge do mundo dominado pelo Osiris coroado. O "Akh" pode então retornar ao mundo dos vivos e desfrutar de seus prazeres, incluindo o amor de sua esposa e a atenção de seus servos. A vida agora lhe pertence por toda a eternidade.

Segundo o Amduat, que significa “O Livro de como é no submundo”, que apareceu completo pela primeira vez na tumba de Tutmés III no Vale dos Reis, o submundo era dividido em 12 horas que Rá precisava enfrentar para no outro dia reaparecer novamente no horizonte, saindo vitorioso de mais uma batalha. O Amduat dava detalhes do que o deus iria encontrar durante a jornada de 12 horas no Duat, um lugar de trevas, onde existiam diversos demônios.

Assim como Rá, os Faraós começaram a associar o Amduat com a sua própria vida e o livro servia para que o faraó morto soubesse os nomes dos deuses bons e ruins que iriam encontrar na passagem junto com Rá.

Houve outras versões como o Livro dos Portões, em que as 12 horas são colocadas como 12 portões.

A primeira hora representa Rá entre o céu e o submundo, quando o sol está se pondo e vai perdendo sua energia.

A segunda hora, Rá entra em um lugar chamado Ur-Nes.

Na terceira hora, o barco de Rá passa sobre o córrego de Osíris e seu barco é acompanhado por três barcos remados por Osíris que assumia formas diferentes.

Na quarta hora, Rá viaja para o deserto de Sokar, um lugar guardado por cobras e nessa hora o barco de Rá vira um barco em formato de cobra para viajar sobre as areias.

Na quinta hora, Rá ainda continua nos domínios de Sokar e é ajudado por 7 deuses e 7 deusas que o levam até um lugar seguro.

Na sexta hora, Rá passa pelo santuário de Osíris e se prepara para o grande momento de enfrentar seu eterno inimigo; a serpente Apópis.

Na sétima hora, a barca de Rá é bloqueada pela serpente Apópis e é onde a batalha acontece.

Na oitava hora, entra na cidade de Tebat-Neteru onde ganha a proteção da serpente poderosa chamada Mehen. É aqui que os deuses ganham vida como Rá.

Na nona hora, o barco solar atinge uma região oculta chamada Amentet, onde a pessoa que aprende os nome dos deuses que estavam no livro, devem honra-los.

Na décima hora, vários barcos transportando deuses amigos de Rá, se juntam a ele e começam a matar os inimigos.

Na décima primeira hora, Rá segura um cetro e na proa do barco um disco solar representa o sol com uma serpente envolta. Essa serpente representa o tempo e ela engoli as horas que se passaram.

Na décima segunda hora, Rá renasce ao leste no horizonte egípcio, na forma de Khepri, o escaravelho.
Houve ainda variações desse mito, como citado acima do livro dos portões e também no livro das cavernas. Todos tinham o mesmo intuito de incluir a alma do morto na barca solar de Rá para que pudessem atravessar o Duat.

Embora não existisse um relato sistemático da doutrina da ressurreição e da vida futura, as principais crenças religiosas sobre a morte deste período encontravam-se na grande coleção de textos religiosos reunidos ao longo dos tempos, e que ficou conhecido como o "O livro dos Mortos". Na verdade, nunca existiu um "livro" assim como entendemos hoje.

Existiram várias recensões destas composições abrangendo um período milenar, contendo crenças, ideais, filosofia, sabedoria, ritos mágicos e iniciáticos, orações, encantamentos e superstições, representativas das mais diversas formas e categorias de religiosidade, cultura e ciência de variadas épocas.

O material do Livro dos Mortos continha uma série de orações e fórmulas mágicas, de caráter iniciático, para facilitar a viagem da alma para Além.

Inicialmente, foram encontrados papiros ao lado das múmias contendo orações, histórias dos deuses e instruções ao morto, junto com textos da mesma natureza pintados nos ataúdes e paredes dos túmulos.

Podemos depreender do pensamento religioso deste período transcrito no "Livro dos Mortos" que, para os egípcios, assim como para outros povos da antiguidade, a morte não efetuava apenas a separação entre corpo e alma, mas, acima de tudo, era a libertação de princípios físicos, mentais e espirituais que constituíam o homem durante a sua vida e após a sua morte.

Vemos a descrição e divisão do homem em outros corpos imateriais. Estes princípios espirituais eram nove ao todo, embora a dificuldade em traduzir seu sentido verdadeiro acabe por levar a alguma indefinição sobre os seus sentidos de fato. São eles:

1. O corpo físico, o Khat, passível de corrupção e decadência, devendo ser preservado pela mumificação. (Aquele a quem os vermes comem).

2. O duplo, o Ka, a individualidade e personalidade abstrata com a forma e os atributos do ser a quem pertencia. Embora pudesse vagar livremente, habitar uma estátua, era obrigado a comer e beber. Quando abandonado sem suprimentos podia deixar sua tumba e vagar como alma errante dando bastante dor de cabeça aos vivos. Esta seria a forma espiritual menos sutil, podendo aparecer aos vivos, falar aos videntes, enviar mensagens, receber os cultos e oferendas, podendo, mediante invocação, realizar determi­nados trabalhos.

3. A alma do coração, o Ba. Embora aparentemente continuasse a viver no túmulo, sua condição era representada na forma de um falcão, podendo voar até o fundo da tumba, levando ar alimentação ao corpo mumificado.

4. O coração, o Ab. A fonte da vida, do bem e do mal, devendo estar ritualisticamente preparado para ser examinado durante o Julgamento. Se ele não fosse cuidado poderia posicionar-se contra o morto em queixas, comprometendo o seu julgamento. Centro da vida pensante e espiritual, a "consciência", revelava tanto os vícios como as virtudes, algo assim como um corpo mental.

5. A sombra, o Khaibit. Não tinha uma definição muito clara, mas estava em conexão com a alma do coração e parecia alimentar-se das oferendas tumulares. Guardava o corpo emocional, os apegos, desejos e paixões que o morto tinha em vida. Para não incorrer no desagrado desta dimensão espiritual, eram feitas as oferendas que mitigassem e aplacassem os desejos, as carências e necessidades que o morto tinha um vida. Era um invólucro de forma espiritu­al.

6. A alma espiritual, o Khu. Um ser etéreo que habitava o corpo espiritual, indestrutível. Não era o espírito mas o espírito da alma, a centelha divina que fornecia energia e habitava a alma, representado em chama.

7. O corpo espiritual, o Sahu. Formava a habilitação da alma e provinha do corpo físico. Sua durabilidade e incorruptibilidade dependia das orações e dos cultos funerários. Unia todos os atributos mentais e espirituais do ser vivo, assim como um fluído que permeava e mantinha coesa a forma física, os sentimentos, os pensamentos e os desejos. Era o Sahu que, integrado ao Ka, realizava tarefas e recebia as oferendas.

8. O poder, o Seklem. Tratava-se da força vital, natural, cósmica, que morava no céu, entre os espíritos, e era o elemento de conexão entre a alma e o espírito, centro da vida pensante e espiritual e que mantinha o indivíduo li­gado ao Universo, à natureza, ao ambiente, à Unidade. Era a vitalidade.

9. O nome, Rhem. Preservar o nome significava a conservação da existência espiritual. A preservação da memória dos mortos era a garantia da espiritualidade. Um dos maiores castigos que se podia infringir a uma pessoa já falecida era apagar o seu nome das estátuas, dos túmulos, condenando-o a uma morte definitiva pelo esquecimento. Isto porque, se o seu nome fosse retirado do culto aos mortos, o defunto nunca seria chamado para o julgamento, para a barca dos deuses, para as oferendas e rituais e para re­ceber as homenagens dos descendentes e da posteridade

Para os egípcios, a frutuosa existência eterna passava-se numa espécie de Campos Elísios, uma forma sacralizada de um Egito ideal. Sua localização podia variar, não havendo uma precisão espacial nas suas diferentes descrições. A morada dos mortos podia situar-se ao Norte, tanto quanto poderia localizar-se acima ou abaixo da Terra.

Em tempos posteriores do Novo Império, a morada dos mortos ficava situada a oeste ou noroeste do Egito, passando por uma fenda nas montanhas da margem ocidental do Nilo.

Uma outra crença colocava os mortos num lugar imaginário, um longo e estreito vale percorrido por um rio de percurso espiral, cercado de vales repletos de monstros e seres perigosos. Esta imprecisão refletia os diferentes níveis espirituais onde os mortos, de diferentes categorias, jaziam. Reinos de trevas ou luz, deuses ou demônios, nas estrelas ou nos subterrâneos, um destino errante na terra convivendo com chacais, devorando carniças e bebendo águas podres: Estas imagens correspondiam aos estágios espirituais de cada morto, a condição de seu sepultamento, ao estado de sua múmia e de sua tumba, de suas estátuas e à preservação de seu nome.

Certas definições estabeleciam verdadeiras geografias do mundo sobrenatural, o Tuat, a partir da ideia da Terra plana, tendo como centro o Egito, rodeado por uma alta cadeia de montanhas. O sol, Rá, nascia de um buraco nesta montanha, e desaparecia por outro situado a oeste do lado de fora das montanhas onde ficava o Tuat.

Além do Outro Mundo existia uma cadeia de altas montanhas e um vale escuro e frio, lugar de medo e horror , cheio de perigos, chamas, va­pores venenosos, terríveis criaturas demoníacas que barravam o caminho das almas e uma serpente gigantesca que tentava eliminar a barca do deus-sol e as almas.

A religiosidade funerária egípcia nunca estabeleceu um modelo fixo do lugar de destino dos mortos. De um lado, foram muitas as situações descritas: na Barca de Rá, no subterrâneo Reino de Osíris, num polimorfo e imaginário Tuat, como uma estrela no céu, como um pássaro.

Por outro lado, as crenças mais difundidas nos cultos aos mortos associavam à múmia uma vida, ou melhor, uma espécie de semivida que dependia dos ritos e oferendas e da manutenção do corpo para continuar vivendo.

Na verdade, a grande concepção religiosa que triunfou na sistematização teológica dos cultos oficiais foi a fusão, a síntese final entre duas divindades opostas: Rá, o deus solar e celestial Osíris, o deus subterrâneo.

Durante o Novo Império, estas duas divindades eram encaradas como emanações de uma mesma unidade principal, como a complementaridade entre a vida e a morte, numa síntese religiosa que marcou o maior período da cultura religiosa do antigo Egito.

Ultrapassar os diferentes estágios da viagem da alma dependia de uma série de conhecimentos, tais como: conservar a memória, lembrar-se do próprio nome e dos nomes secretos dos deuses e das passagens, recitar a declaração de inocência ou a confissão negativa aos quarenta e dois deuses que constituíam o tribunal, evitar uma segunda morte espiritual e, supremo objetivo, o acesso da alma à barca solar, alcançando a eternidade ao lado das divindades, uma tranquila existência no Reino dos Deuses, partilhando suas venturas e imortalidade.

Aquelas almas que não morressem durante a viagem, podiam ser devoradas por Amemet, o monstro devorador dos ímpios e injustos durante um julgamento e pesagem do coração desfavoráveis. A crença na imortalidade da alma ligava-se à ressurreição de um corpo espiritual num outro mundo eterno, livre das penas e pesares da vida, em felicidade e imortalidade, ao lado dos deuses.

Um aspecto deve ser considerado. A atitude diante da morte entre os egípcios era, sobretudo, mágica. O aspecto moral, embora existisse, era relegado diante da possibilidade de acomodar as declarações no tribunal dos mortos.

O coração do morto podia ser compelido, por artifícios, a testemunhar em favor do morto, proclamando-se justo. Não havia nenhuma preocupação de ordem ética ou Heróica da moral no julgamento, nem recompensa espiritual após a morte. Nas confissões negativas de culpa do Livro dos Mortos, o desenlace feliz da alma dependia tanto do respeito a certos tabus como a observância de costumes com interesse social.

Duas imagens se associavam no simbolismo da morte. Uma, de frio e trevas, mundo subterrâneo e adormecimento. Outra, a da grande vitória sobre a morte nas crenças que apontavam um caminho celeste, estelar e solar, claro e aquecido, uma sobrevivência espiritual no espaço superior da alma imortal, ao lado dos deuses.

No caso das crenças religiosas egípcias a síntese teológica Osíris-Rá representou uma fusão que caracterizou estes dois níveis simbólicos, estas duas tradições religiosas, entre a Desordem e a Ordem mitológica e, sobretudo, um novo rumo mais espiritual e de vitória para a alma.

Viver significava prepara-se para um destino final próximo às divindades, a Imortalidade.

Se na dimensão mitológica e poética os mortos tem imagem de sombras, isto não impede a existência do culto aos ancestrais, aos antepassados. Na religião grega familiar os mortos são entes sagrados, denominados de forma respeitosa como os "antepassados bem-aventurados". Os mortos são vítimas consagradas aos deuses infernais e descem aos infernos sem esperança de retorno. Os Tritopatores que são, às vezes, descritos como os gênios dos ventos podem ser considerados também como as almas dos ancestrais, sendo invocados para abençoar as uniões sexuais, pois a concepção é a ligação espiritual com os antepassados.

De um lado, estas crenças nos antepassados, nas ligações entre corpo e a alma, nas manifestações dos mortos, as oferendas funerárias, as invocações dos mortos para proteção da família, para favorecer a fertilidade e colheitas e defesa em caso de guerra, indicam uma forte relação com antigos ritos agrários e de fecundidade, sobrevivendo com as tradições poéticas.

Independente da ideia de preservação do corpo com vistas à situação da alma, é o corpo morto a oferenda principal aos deuses, fosse na inumação como na cremação. Aliás, o que vai ser dito agora é a base de todos os ritos funerários, em qualquer cultura religiosa, porém este sentido oculto frequentemente não é colocado para profanos ou foi esquecido na poeira do tempo.

Seguindo uma determinada organização ritual baseada na hierarquia das oferendas, a primeira, e mais importante, é o corpo morto. Em segundo, os animais sacrificados. Em terceiro, os vegetais (frutos, graus, flores). Em quarto lugar, comidas e bebidas. Em quinto lugar vem os objetos como armas, joias, estátuas, sandálias, etc.
Os gregos da mais remota antiguidade enterravam no chão de seus celeiros grandes jarros contendo grãos, sementes, produtos da terra e também os mortos da família.

O mundo subterrâneo constitui o espaço da morte, dos deuses subterrâneos, onde germinam as sementes e residem os mortos. Esta concepção remetem a crenças de cunho arcaico ligadas à divindade da Terra, Gaia, ligadas às estruturas agrícolas e profundamente enraizadas durante séculos no pensamento religioso.

Na Grécia, a Mãe-Terra Gaia gozou de culto muito espalhado, mesmo após ser substituída por outras divindades: "É a terra que eu cantarei, mãe universal com profundas raízes, avó venerável que nutre em seu solo tudo que existe... És tu que dás vida aos mortais, como és tu quem lhes tiras a vida... Bem- aventurado aquele a quem tu honras com a tua benevolência!".

A terra como divindade é considerada receptáculo de forças cósmicas sagradas, uma fonte inesgotável de formas, representando a inserção do homem no Cosmos, tanto na vida como na morte. Tudo que está sobre a Terra constitui uma grande unidade na estrutura cósmica primordial, assim como suas manifestações: florestas, montanhas, água, vegetação, túmulos e almas. Cabe à Grande-mãe da vida, regeneradora dos ciclos existenciais conservar, após a morte, a pujança da vida espiritual.

Vida e morte significam apenas momentos diversos de um mesmo destino: se a vida é apenas separar-se das entranhas da terra, a morte é o regresso à mãe primordial, um retorno às origens ancestrais. Num período, vive-se em cima da Terra; em outro, embaixo dela. Mas sempre dependentes de Gaia. Esta maneira de ver e crer pode ser observada em praticamente todas as sociedades e culturas religiosas das mais diferentes épocas e locais, com profundas repercussões até os dias atuais.

A construção tumular é importante. A ligação mágica que desperta a "alma" das oferendas é conseguida pelo fogo, defumações, orações, cantos, hinos, lamentações. Este ritual fúnebre, bem executado, tem o poder de remeter tudo, principalmente o morto, para uma dimensão espiritual.

O sepultamento constitui uma forma de culto aos deuses, à Terra e aos elementos ligando a figura da Grande-Mãe que vela, nutre e sustenta, com a imagem da divindade destruidora das formas, o grande veículo de purificação e libertação.

Este mesmo raciocínio pode ter efeito nos ritos funerários, em relação ao fogo, o grande transformador e libertador das formas e da matéria. O fogo aquece, protege, nutre e destrói, purificando e libertando. O corpo é também, neste caso, a oferenda principal. O fogo separa o eterno do efêmero. O fogo reflete a imagem do espírito ígneo que preenche o universo, desfaz as formas, liberta.

Em realidade, temos uma coexistência entre a concepção do Hades, do Tártaro, dos sombrios e infernais mundos das almas e os rituais e cultos dos mortos e antepassados.
(Continua)



















Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por sua atenção!
Paz Profunda!